DOLORES
Sua figura transmite fielmente o que deve ter significado esses 60 e poucos anos de sofrimento e solidão. Olhar rígido, pele manchada, cabelo cacheado preto lambido – endurecido pelo excesso de creme de pentear –, num rosto emoldurado por um óculos de grau de armação quadrada escura. Taciturna, com postura de ombros caídos, coroada por uma giba costal, que ilustra bem o peso do mundo que parece carregar.
Ela é de todo aquele perfil típico de paciente psiquiátrico, condenado à cronicidade, apesar das promessas da indústria farmacêutica: baixa reatividade afetiva (para não dizer nenhuma) e ausência absoluta da possibilidade de um sorriso (em 3 anos nunca esboçou qualquer expressão facial). Ideias organizadas, entretanto, sem a presença de sintomas psicóticos, o que motivou-me sempre a tratá-la de forma diferenciada. Além de diabética, em uso de insulina, obesa e hipertensa, seu caso faz-se mais complexo pelo o uso crônico de álcool, que contribui a condená-la às dependências de sua cama, de onde quase nunca tem forças para sair.
Semanas pra trás, veio novamente à consulta para renovar suas receitas. Contrariado pela invariável evolução do seu quadro, decidi fazer mais perguntas e aprofundar na anamnese.
Como começaram seus problemas? Aos 14 anos, depois de seu pai colocar fogo na casa acendendo um cigarro bêbado com palito de fósforo, deitado no sofá, após chegar da rua pela madrugada. Faleceu dias depois no hospital, em consequência de graves queimaduras.
Como começaram seus problemas? Aos 14 anos, depois de seu pai colocar fogo na casa acendendo um cigarro bêbado com palito de fósforo, deitado no sofá, após chegar da rua pela madrugada. Faleceu dias depois no hospital, em consequência de graves queimaduras.
Sua mãe sempre foi uma doida varrida, segundo palavras dela mesmo, e os filhos que teve posteriormente, nenhum parece gostar dela o suficiente, nem oferecer-lhe a atenção que ela considera merecer. Casou-se com um homem de aspecto simples, cognitivamente deficitário, com transtornos neuróticos, ainda que menos intensos.
Dessa vez tentei ser mais enérgico. Conversamos e conversamos e finalmente consegui – depois de muita insistência – que ela fizesse o acordo de comparecer ao grupo de atividades físicas que organizamos no Parque Três Meninas uma vez por semana.
Mesmo queixando-se de dores na perna, com cara de inconformidade e poucos amigos, logramos que participasse das atividades: alongou-se, caminhou na ponta dos pés, também sobre os calcanhares, deu uma volta no parque caminhando um pouco mais rápido num percurso cheio de árvores, socializou em dupla, fez musculação com thera band e deu saltitos sorteando cones e discos coloridos pelo chão. No final, apresentou-se em voz alta, recebeu as boas-vindas ao grupo numa só voz e foi abraçada coletivamente num grande círculo de seres humanos suados.
No dia seguinte, compareceu à sessão de acupuntura, lá pelo fim da tarde. Abri a porta para chamá-la e, por primeira vez, insinuou-se com um sorriso.
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