QUEM É O CULPADO
Apareceu num sábado, como que caído do telhado. Parecia estar de passagem. Trazia ao ombro uma bolsa de viagem preta, meio rasgada, na qual impressionava carregar o que lhe restava de vida. A UBS estava vazia, como a maioria dos sábados, o que nos permitiu conversar vagarosamente, sem interrupções.
Contou-me sua história em tom agressivo, tentando depositar sobre mim as desgraças enfadonhas que arrastava. Podia sentir de longe seu alento etílico, numa boca de dentes enferrujados, e trazia vestidas roupas que, evidentemente, há muito não trocava. Sobre a cabeça, cabelo algum restava, de um formato ovalada, comprida, brilhante. No corpo, alto e rijo, ao menos umas 6 marcas de tiro, que fez questão de sinalizar, levantando a camisa, abaixando o short, dando voltas pelo consultório.
“Minha derrota aconteceu quando minha mãe faleceu. Logo depois - tinha uns 40 anos - , fui desligado da polícia. Eu era PM, no Rio de Janeiro. Um mês após minha dispensa, minha mulher me deixou. Só restou-me a bebida como consolo”.
“Eu não era um bom policial, era mau: batia, torturava, matava; mas só quem merecia...”.
“Preciso que o senhor me ajude, doutor. Me ajuda a parar de beber. Eu não tenho para onde ir!”.
“Esses exames que o senhor me pediu não sei se vou conseguir fazer. Alcoólatra é assim: nunca se sabe se ele vai ter vontade de fazer algo no dia seguinte. Esse encaminhamento para o CAPS... não sei se vou conseguir ir até lá (- Mas fica perto, dá para ir caminhando). Pois é, não sei se terei vontade”.
Levei-o até a equipe de enfermagem no intuito de reforçar as orientações e viabilizar o vínculo. Pouco conseguimos. O homem despediu-se, lançando-me ameaças proféticas, que interpretei como súplicas, e um tanto de desespero:
“Se eu não conseguir fazer o que o senhor me pediu a culpa é sua. Você tinha que me ajudar agora, me curar agora...”.
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