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DOLORES

Sua figura transmite fielmente o que deve ter significado esses 60 e poucos anos de sofrimento e solidão. Olhar rígido, pele manchada, cabelo cacheado preto lambido – endurecido pelo excesso de creme de pentear –, num rosto emoldurado por um óculos de grau de armação quadrada escura. Taciturna, com postura de ombros caídos, coroada por uma giba costal, que ilustra bem o peso do mundo que parece carregar. Ela é de todo aquele perfil típico de paciente psiquiátrico, condenado à  cronicidade, apesar das promessas da indústria farmacêutica: baixa reatividade afetiva (para não dizer nenhuma) e ausência absoluta da possibilidade de um sorriso (em 3 anos nunca esboçou qualquer expressão facial). Ideias organizadas, entretanto, sem a presença de sintomas psicóticos, o que motivou-me sempre a tratá-la de forma diferenciada. Além de diabética, em uso de insulina, obesa e hipertensa, seu caso faz-se mais complexo pelo o uso crônico de álcool, que contribui a condená-la às dependências de sua c

CRISES DA MEDICINA

Abuso de poder e insensibilidade ao sofrimento

QUAL É A DA TV?

Se a televisão usasse metade do tempo que gasta esculachando a saúde pública para ensinar a população a utilizar melhor os serviços disponíveis, transmitir informações de prevenção e promoção, explicar o manejo básico dos resfriados, gripes e diarreias, grande parte dos nossos problemas estariam resolvidos.

SERVIDOR? PÚBLICO

Ainda não entendo ao certo o que acontece na psicologia de alguns funcionários públicos, que os fazem enxergar seu trabalho como um favor e não como uma missão, uma obrigação; em que momento deslocam o beneficiário do serviço que prestam à situação de figura passiva-sem-direitos e passam a ser achar a peça mais importante da instituição. No SUS, reparo que muitas vezes queremos penalizar o usuário pelas mazelas dos governos, pela precariedade da infraestrutura e a falta de insumos. Revertemos nossa impotência no elo mais fraco. Oprimidos pela sociedade, aproveitamos nossa posição para oprimir alguém. E tudo que conseguimos é transformar os usuários, motivo fim de nossa existência, em ferrenhos inimigos...

CONSULTÓRIO OU DRIVE THRU

Tem paciente achando que consultório médico é drive thru de fast food. Chegam e vão logo pedindo, sem nem sentar direito: “Quero um exame de sangue duplo, com adicional de fezes e urina; um combo com a receita dos meus remédios controlados, um remédio pra verme e umas vitaminas; de sobremesa, um raio x da coluna e um encaminhamento para o reumatologista. Pra levar, viu doutor...!”

MINHA EXPERIÊNCIA DIETÉTICA

Alguns perguntam porquê mudei tanto e tenho comido menos carne, frango, ovo, leite de vaca, queijo, derivados e embutidos. Tenho tentado consumir esses alimentos, que a indústria à grande escala vem transformando em verdadeiras porcarias, com alto conteúdo de químicos, hormônios, antibióticos e agrotóxicos (sim, a carne tem muito mais agrotóxico que os vegetais), no máximo 1-2 vezes por semana. Não tomei essa decisão por modismo nem fanatismo de qu alquer índole. Apenas consequência de leituras e algumas modificações gradativas que foram acontecendo no meu paladar. Fui fazendo as mudanças e observando as diferenças no meu funcionamento geral. E, depois de algum tempo, fiquei tão impressionado que quis compartilhar minha experiência com vocês:  1. Maior facilidade para manter o peso corporal e diminuição da circunferência abdominal. 2. Maior disposição física. Acordo mais disposto. Não sinto preguiça depois do almoço. Melhor desempenho laboral à tarde. 3. Menor sensação de can

QUEM É O CULPADO

Apareceu num sábado, como que caído do telhado. Parecia estar de passagem. Trazia ao ombro uma bolsa de viagem preta, meio rasgada, na qual impressionava carregar o que lhe restava de vida. A UBS estava vazia, como a maioria dos sábados, o que nos permitiu conversar vagarosamente, sem interrupções. Contou-me sua história em tom agressivo, tentando depositar sobre mim as desgraças enfadonhas que arrastava. Podia sentir de longe seu alento etílico, numa boca de dentes enferruja dos, e trazia vestidas roupas que, evidentemente, há muito não trocava. Sobre a cabeça, cabelo algum restava, de um formato ovalada, comprida, brilhante. No corpo, alto e rijo, ao menos umas 6 marcas de tiro, que fez questão de sinalizar, levantando a camisa, abaixando o short, dando voltas pelo consultório. “Minha derrota aconteceu quando minha mãe faleceu. Logo depois - tinha uns 40 anos - , fui desligado da polícia. Eu era PM, no Rio de Janeiro. Um mês após minha dispensa, minha mulher me deixou. Só resto

HISTÓRIAS QUE CONFUNDEM

O cara vinha consultando há um bom tempo por emagrecimento. Tinha perdido 9 kg em dois meses, além de sentir-se apático e com “fraqueza nas pernas”. Era sua quinta consulta, apesar de ter feito os mais variados exames – solicitados por outros médicos – para descartar anemia, diabetes, tireoidopatias. Rapaz jovem, 39 anos, trabalhador manual, sem sinal algum de doença orgânica ou sistêmica.  Notei, entretanto, que, apesar de seu excelente aspecto físico , suas sobrancelhas repousavam levemente arqueadas, e seu olhar jazia um tanto sem viço. Intrometido, perguntei como andava sua vida pessoal (deveria ter um campo obrigatório no prontuário para essa pergunta).  “Há dois meses minha esposa me deixou. Uma aventura: me apaixonei por outra mulher. Sabe, essas paixonites agudas? Achei que tinha encontrado a pessoa ideal. Mas tudo durou até minha esposa descobrir e ligar pra ela esculhambando. Ela ficou indignada por saber que eu era casado e saiu fora.  “Você não disse pra ela que era

SLOW MEDICINE

Aparências nos levam a crer que o sucesso está no excesso: pratos transbordando, armários repletos, carros luxuosos, exames caros, receitas abarrotadas. A sociedade de consumo, maquinalmente, nos educa desde cedo para uma sanha hiperbólica sem fim. E esse desenfreio, na medicina, já vem cobrando seu preço alto, em termos de desperdiço de recursos, efeitos colaterais, interações medicamentosas, resistência bacteriana, aumento da morbidade, diminuição da qualidade  de vida e mortes precipitadas.  Um tênue equilíbrio deve existir entre o princípio hipocrático “primun non nocere” e o ímpeto intervencionista dos médicos, ao custo de invocarmos, se pendemos irresponsavelmente a balança para os excessos, a uma vingativa deusa da mitologia grega: Nêmesis, padroeira, segundo Ivan Illich, da iatrogenia. Contrariando essas tendências impostas pela lógica de mercado, posiciona-se, cada vez com maior eloquência, a figura do Médico de Família, cuja missão primordial é proteger-nos dos excess

CARTA AOS MÉDICOS-CHEFES DOS MANICÔMIOS

Senhores, As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredito. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para  cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos re

VERDADES NÃO DITAS SOBRE O OUTUBRO ROSA

1. Excesso de mamografias pode prejudicar.  2. Não é recomendado começar a fazer mamografias antes dos 50 anos (porque as mamas são densas, o câncer de mama muito raro nessa idade e os erros do exame muito frequentes); nem após os 65 (nessa idade é melhor fazer diagnóstico clínico). 3. Mamografia não é um exame infalível. Seu resultado depende da interpretação do radiologista, e de outros exames e/ou intervenções para confirmar suspeitas levantadas. 4. Mamografia de rastreamento pode confundir ou atrapalhar o diagnóstico do câncer em dois sentidos: por apresentar resultados falsos positivos (mamografia alterada, mas após seguimento, outros exames e intervenções ficar demonstrado que está tudo bem) e falsos negativos (mamografia com resultado normal, mas ao longo do tempo se demonstra que a mulher tinha câncer). 5. Nem todos os tumores de mama se comportam como câncer invasivo, doença. Em média 30% são tumores histológicos, localizados, que jamais causariam problemas clínicos n

A PACIENTE PROFESSORA

Quem estudou em Cuba quiçá lembre o que alguns mestres ensinavam: “Coloque a cadeira do paciente ao lado de sua mesa; nunca à frente. A mesa que se interpõe entre você e o doente pode criar uma espécie de barreira psicológica”. Mais de um paciente entra ao consultório e fica confuso, sem saber onde sentar. Até ensaiam puxar a cadeira para mais longe, que interrompo rapidamente com um: “Pode sentar aqui do lado”. Encabulada, a pessoa se aproxima, se senta  devagarinho, tentando não esbarrar em nenhum detalhe. Mas, logo relaxa, quando abro o primeiro sorriso, ou faço algum comentário (que tenta ser) engraçado. Esses dias, uma das pacientes que atendemos no pré-natal, professora de literatura da rede pública, contou à enfermeira que trabalha comigo a seguinte historia: “Nunca tinha usado o serviço público. Achava que era péssimo. Com a crise e a necessidade, não teve outro jeito. Mas vi que estava totalmente errada. Fiz a primeira consulta com o Dr. Sabino, que me olhou nos olhos

MEDICINA DO DIÁLOGO

Prefiro praticar a medicina do diálogo aberto: compactuando, gerando consensos, instigando, refletindo, chamando responsabilidade, de forma ativa, para que os pacientes assumam o controle de sua recuperação e parem de pensar em si mesmos como vítimas autocomplacentes de uma enfermidade.

CURA QUEM TOCA E CONVENCE

Gente humilde, analfabeta, beirando os 75 anos; demasiado falante, de um sotaque carregado, que depois descobri provir de uma cidade chamada Redenção do Gurguéia, no Piauí.  No fim da consulta, já com prescrições e orientações, a falante senhora sentiu necessidade de contar-me uma história, no intuito de me mostrar, talvez, que nem sempre nós médicos estamos certos.  "Sentia dores há muitos anos nesse meu juei. Tinha dia que nem conseguia andar. Me arrastava pela casa. Ia no médico... e era injeção de voltaren, remédio, comprimido direto, e nada de aliviar. Perdi as conta. Diziam que eu tinha uma tal de as... as... (- Artrose, interrompi). Isso. Astroze. Mas era dor demais... "Até que um dia passou um homem lá na rua vendendo um aparei. O moço sentou comigo, e me expricou tudim; leu os manual, com muita atenção; me perguntou um monte de coisa, tocou na minha perna, e me falou: - Esse aparelho vai resolver todas as dores da senhora. Eu garanto. Pode confiar. Se não t

SAÚDE - VÍDEO

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O documentário, realizado pelo Conselho Nacional de Saúde, em parceria com o CEAP, OPAS/OMS, faz parte de um Projeto de Formação para o Controle Social no SUS, voltado para conselheiros e conselheiras municipais e estaduais de saúde, além de lideranças de movimentos e organizações populares que atuam na luta pelo Direito Humano à Saúde.

SEM CONVERSA NÃO DÁ

Motivo da consulta: falta de ar. Idade: 44 anos. Não tinha histórico de asma, DPOC ou insuficiência cardíaca. Fez uma primeira consulta com um clínico, quem, de cara, solicitou-lhe um raio x de tórax e uma espirometria (sim, uma espirometria!).  O resultado do primeiro exame veio normal, a não ser por alguns osteofitos marginais nas vértebras torácicas que o médico fez questão de chamar de “bico de papagaio”; o resultado do segundo surpreendeu, com vários  parâmetros alterados, concluindo com a seguinte informação: idade pulmonar equivalente a 77 anos. Enquanto lia os laudos, com os olhos baixos, a mulher me observava extremamente apreensiva.  “Preciso de um encaminhamento para o pneumologista doutor. Urgente”.  – Está bem, não contrariei. – Só vamos conversar um pouco sobre como todos esses problemas começaram. Pode ser? "Foi depois que um tio meu morreu. Na mesma época, entraram lá em casa e estupraram minha filha. Pularam o portão, a tarde, e pegaram-na de surpresa,

ESQUIZOFRENIA

Os resultados da esquizofrenia são muito melhores em países pobres como India e Nigéria - onde apenas 16% dos pacientes são regularmente medicados com antipsicóticos -, do que nos EUA e outros países ricos, onde o uso contínuo de medicação é a norma-padrão de tratamento.

IMPOSSÍVEL NÃO SER FEMINISTA

Dias atrás, tentando entender porquê as mulheres costumam ter mais infecções urinárias que os homens, descobri que, apesar de possuirem a uretra mais curta, influencia o fato de evitarem tomar água quando estão fora de casa, na tentativa de reduzirem suas idas ao banheiro. Algumas alegaram ser por causa da precária higiene de banheiros públicos, outras pela maior dificuldade de tirarem a roupa; parte confessou a possibilidade de um medo implícit o de sofrerem algum tipo de abuso ou violência.  "Banheiros podem ser lugares perigosos". Não é fácil ser mulher nesse tipo de sociedade, e isso nós homens jamais entenderemos. Até pegando um uber - pasmem -, o risco de estupro existe, como de fato aconteceu recentemente com a escritora Clara Averbuck. Impossível não sentir-me indignado, envergonhado como homem; impossível compactuar com o machismo que limita a existência, agride, maltrata e adoece nossas mulheres.

SAÚDE NÃO SE COMPRA, SE CONQUISTA

É chato falar dessas coisas. Mas ando verdadeiramente assustado com o estrago que o dinheiro e o consumismo vêm causando nas noções de boa saúde em nosso país. Vejo pessoas enchendo a boca para falar: "Só a consulta com ele custa 500 reais!"; "Nossa. Pediu um monte de exame. Esse médico é bom!"; "Esses remédios devem ser maravilhosos, porque custam o olho da cara". Quem dera Saúde fosse um produto que se compra no supermercado. Pelo contrário: é resultante de uma complexa interação de fatores, mas sobretudo consequência direta de nossas pequenas escolhas e, inevitavelmente, das escolhas de médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos e outros profissionais a quem submetemos nossos cuidados. Surpreendo-me diariamente com as consequências deletérias de um modelo de assistência médica que lucra com o sofrimento alheio; um sistema que, no afã por dividendos, estimula excessos para favorecer fornecedores e investidores, sob o risco de prejudicar quem c

COLEGAS, SIMPLESMENTE PAREM

Se me houvessem contado não teria acreditado. A menina tinha simplesmente começado a sentir cólicas abdominais, enjoos e uma inoportuna acidez estomacal. Preocupada, marcou consulta com o gastro no hospital Anchieta. Como de praxe, solicitou bateria de exames de sangue e uma endoscopia, para começar a avaliação. No retorno, afirmou com segurança que seu problema era gastrite e uma bactéria no estômago. Prescreveu omeprazol, dois antibióticos por 14 dias e uma dieta restrita. Cortou tanto tipo de alimento, recorda, que havia emagrecido alguns quilos e vinha sentindo fraqueza. Seus sintomas pioraram, no entanto, e decidiu marcar consulta com outro gastro. Nao satisfeito com os exames feitos há tão pouco tempo, pediu novamente uma endoscopia. No laudo: gastrite enantematosa leve. Medicamentos, recomendações e dieta: lá foi ela de novo.  A jovem, de 22 anos, porém, estava ficando preocupada. Que gastrite era essa que não melhorava? Por conta própria, recomendado por uma amiga, passou

AMOR PLATÔNICO

- Tem filhos? - Não. Nunca namorei. - Com 40 anos, nunca namorou? Nem um beijo na boca?, perguntei em tom jocoso. - Não!, e sorriu. Sua voz se arrastava, numa boca quase sem dentes; seus braços retos, dando a impressão de maiores longitudes, e os dedos das mãos rígidos, semi-flexionados. Falava lentamente, como que vasculhando a cabeça à procura de palavras. - Como foi que você começou a ficar doente? - Tinha uns 13 anos, na escola. Me apaixonei por uma menina. Mas ela começou a sair com outro rapaz. Perdi a vontade de estudar. Comecei a me comportar de forma estranha. Andarilhava por aí... Até que tiveram de me internar no “Agapapi”. - Como era o nome dela? - Não gosto de tocar nesse assunto. Não gosto de lembrar o nome dela. Fechou a cara e continuou fazendo os exercícios orientados pela professora Raquel. Voltei meu olhar às arvores distantes do Parque Três Meninas e deixei meu pensamento voar...  Como teria sido a vida daquele rapaz, hoje tomando 4 reméd

NÃO SE ESPANTEM

Tem gente que se espanta: "Nossa! Um médico que se interessa por economia, antropologia, sociologia, política". Pra mim é tipo imaginar um físico que não goste de filosofia; um chef de cozinha que não se interesse por agricultura e pecuária; um paraquedista que ignore meteorologia...

DESDE ENTÃO, AS COISAS SÓ PIORAM

Desde a chegada da Clorpromazina, um dos primeiros antipsicóticos inventados pela indústria farmacêutica, as taxas de invalidez por doenças psicóticas quadruplicaram no EUA. Não deveria ter diminuído?

COMPLOT DE DOMINAÇÃO INTERESTELAR COM O RIVOTRIL?

Sustento a tese de que o Brasil só chegou a essa situação deplorável devido ao uso crônico e massificado de benzodiazepínicos entre nossos cidadãos. Eles - as drogas mais consumidas da nação (somos o maior consumidor de Rivotril do mundo) - produzem sérias dificuldades para se concentrar, recordar, aprender coisas novas e solucionar problemas (está explicado...). A longo prazo causam mais ansiedade, depressão e deterioro cognitivo, contribuindo para o declínio geral da capacidade de funcionamento das pessoas em sociedade. Tenho absoluta certeza do complot entre donos de farmácia, lobby transnacional, CIA, FBI, Pentágono, médicos desatualizados, pseudopresidente-ovacionado-em-potencial, igrejas da teologia da prosperidade, canais de televisão, juízes e congressistas.

PROMETEM FLORES, COLHEMOS LAMENTOS

Vida de terceirizado é assim: greve quase todo mês para tentar receber em dia o salário que lhe é de direito. Vire e mexe o salário de vigilantes e do pessoal da limpeza do centro de saúde onde trabalho atrasa. As contas no fim do mês, entretanto, nunca deixam de chegar pontualmente. Imaginem a aflição? Pela manhã atendi um jovem de 40 anos muito bem disposto, apresentando subidas de pressão arterial associadas ao estresse. Ansioso, sem empr ego formal há alguns meses, disse sentir-se frustrado como "parceiro" da Uber. - No início até que era bom. Conseguia fazer um dinheiro e pagar as contas. Hoje, por conta da crise, já são mais de 20 mil motoristas em Brasília. Só estou conseguindo umas 9 viagens por dia. E olha que trabalho de 12 a 15 horas direto nos dias de semana.  (À noite e fim de semana evito, porque tem muitos bêbados. Nego vomita o carro todo, e às vezes quer entrar de galera). ... Olha. A gente tem que repassar 25% mais R$ 0,79 por corrida para o aplica

MENOS É MAIS

A jovem de 21 anos passou a sentir uma dor em baixo ventre que a incomodava bastante. Consultou no posto de saúde próximo de sua casa, saindo com uma receita de buscopan. Dias depois, havendo a dor persistido e se intensificado, procurou a emergência do hospital.  Avaliada pelo cirurgião geral de plantão, ficou internada pela suspeita de apendicite. Fizeram exames. O hemograma completo revelou discreta leucocitose. Quando já estava tudo pronto para a operação, o chefe do servi ço avaliou melhor o caso e colocou em dúvida o diagnóstico. Pediram uma tomografia de abdome total e pelve, cujo resultado foi normal. Decidiram então encaminha-la ao serviço de ginecologia. Reavaliada, disseram não ser nada grave (apesar de a dor estar mais intensa) e a mandaram para casa com analgésicos. De volta ao mesmo posto de saúde, 6 dias após, e sentindo dores que dificultavam até seu caminhar, conseguiu consulta com um interessado e preocupado médico de família. Perspicaz, teve a (nada brilhante)

DESEMPREGO ADOECE

Hoje o presidente postiço será julgado pelo congresso mais farsante da história, em um país em coma, incapaz de reagir.  Resumo nossa deprimente situação na imagem de um senhor que atendi ontem: hipertenso, queixando-se de uma dor opressiva intensa na cabeça e no peito, que irradiava por toda a coluna cervical até a lombar, inabilitando-o para quaisquer atividades.  Sua face era só angústia, impotência e desespero; parecia haver colocado a máscara do homem-mais-triste-sobre-a -terra. Com os olhos embebidos em lágrimas, confessou: - Estou desempregado... Como não ficar ansioso, doente? Se todo mês chega X de contas pra pagar, e eu só tenho Y de dinheiro... É muito duro ver um pai de família envergonhado diante de sua esposa, aos prantos, desamparado, culpabilizado por sua desgraça, num país que ganha todos os dias o prêmio mundial da hipocrisia.

EXPLICA ESSE PARADOXO

Primeiro nos contaram que as doenças psiquiátricas são causadas por desequilíbrios químicos no cérebro. Inundaram o mercado com uma infinidade de drogas psicotrópicas para corrigi-los e, paradoxalmente, as doenças psiquiátricas vêm em aumento. Depois associaram o perfil lipídico no sangue com o risco cardiovascular. Saturaram o mercado com uma diversidade nunca vista de medicamentos para reduzir o colesterol, LDL, triglicérides e - pasmem - o índice de infartos de miocárdio e AVC continua aumentando...

OS 6 MELHORES MÉDICOS DO MUNDO

1. Luz do sol 2. Descanso 3. Exercícios 4. Alimentação  5. Auto-estima 6. Amigos

ENCONTRO ENTRE CIVILIZAÇÕES

A freira cruzou a porta a passos lentos. Sentou-se a meu lado em silêncio e tudo, de pronto, fez-se diferente. A força do seu hábito transfigurou o ambiente, e o contraste com meu jaleco branco fez a consulta parecer um encontro entre civilizações.  Enquanto falava, seu crucifixo de madeira de uns 10 cm, pendurado à altura de seu peito, atraía inexoravelmente meu olhar, e sua pele branca arrugada, em um rosto tenaz e ao mesmo tempo melancólico, remetia-me a profundos enclausu ramentos.  Contou-me fazer acompanhamento de seus padecimentos com uma médica cubana maravilhosa que descobrira no posto de saúde perto de sua casa, após ser maltratada por diversos médicos em consultas particulares. Ela era muito mais atenciosa e competente. Lamentava, porém, o fato de sentir-se obrigada a procurar outro médico, depois de alertada sobre sua duvidosa procedência: um país comunista.  "A doutora era gente boa, mas vinha de um lugar pobre e muito feio, onde as pessoas sofrem. Por isso el

POMADA VAGINAL HIDRATANTE

Pele queimada, 58 anos. Veio por uma receita de seus remédios para a pressão, mas aproveitou a consulta para um pedido inusitado: - Doutor, vou te pedir um favor. Me ajuda. Consegue pra mim uma pomada vaginal pra passar nos pés. Estão todos rachados. É que ando muito vendendo umas coisinhas pra conseguir meu dinheiro. Não dá pra ficar em casa esperando esmola do meu marido. "Tá certo. Mas vou te conseguir um óleo mineral, pode ser?".

DILEMA

É um senhor de 88 anos... Raramente aparece na consulta sem a companhia de sua esposa, com quem leva a vida ha mais de 50. Nunca o vi vestido com camisa que não fosse social, calça de linho, cinto e sapatos pretos – algo envelhecidos, mas sempre engraxados –, cabelos penteados, e higiene impecável. Afável e educado no trato, cordial e muito agradecido; ativo, e absolutamente lúcido. Costuma expor suas queixas em forma de perguntas. Dessa vez, compareceu só, e com semblante de  preocupação foi logo argumentando: “Esses dias pra trás comi um pão com goiabada que me deixou passando mal; com muitos gases e uma dor estranha na barriga. Minha mulher também comeu, mas não sentiu nada". Pedi que se deitasse, só mesmo para desencargo de consciência. Ao tocar seu abdome, senti uma massa volumosa, de consistência endurecida, em sua porção superior. Fiquei paralisado, atônito. Fingindo que continuava examinando, tomei tempo para pensar... "Quê fazer? Pedir exame ou não? Investigo

MENTALIDADE

Não é difícil entender a mentalidade de nossos médicos: formados preponderantemente em cenários hospitalares - ambiente onde impera a doença -, e por professores de mentalidade "hospitalocêntrica", extrapolam para fora deles sua dinâmica de atendimento. Trazem para a atenção primária essa concepção altamente intervencionista e medicalizada, justificada no ambiente hospitalar, mas não fora dele, onde as pessoas saudáveis são maioria. Isso explica um pouco do caos e das contradições de nosso sistema, e o porquê das pessoas estarem cada vez mais hipocondríacas e doentes.

FINGIMOS QUE TRABALHAMOS, SENHOR MINISTRO

Senhor ministro da saúde. É verdade. Nós, Médicos de Família e Comunidade, fingimos que trabalhamos quando: Nossas equipes não têm espaço físico adequado para acolher os usuários e realizar escuta qualificada de suas demandas; Não temos carro oficial disponível para realizar os atendimentos domiciliares de pacientes acamados; Não temos laringoscópio caso precisemos intubar de urgência algum paciente; Não temos desfibrilador nem monitor caso alguém tenha um infarto dentro da unidade; Não temos oxigênio para dar suporte a pacientes com crise de asma ou bronquiolite;  Nossas enfermeiras não têm consultório para compartilhar os atendimentos e a demanda das equipes com o médico; Quando faltam reagentes no laboratório para os exames do protocolo de seguimento do pré-natal; sem falar em outros tantos necessários para o diagnóstico e acompanhamento de diversas enfermidades; Quando nossas farmácias não disponibilizam os medicamentos que prescrevemos aos doentes que não tem din

OS CUSTOS DE UM CUIDADO AO AVESSO

Ao parecer, s ó ex iste uma lei que  ainda  é  cumprida   à risca  no Brasil: a   Lei dos Cuidados Inversos.  F az emos mais  ressonâncias  magnéticas  e tomografias  computadorizadas  que   Estados Unidos, França e Alemanha , porém  não   conseguimos  garanti r  um  simples exame de urina tipo 1 (EAS) a  todas as mulheres durante o  pré-natal .   Gastamos   absurdos  com o que é supérfluo ,  às vezes inútil,  e muito  mais tentando remediar  as consequências  de  não  haver   investido n o que é fundamental.  Semana passada  atendi u ma puérpera de 16 anos  que, ao  contrário  das expectativas , demon strava interesse por seguir   todas  as orientações fornecidas pela equipe .  Estudante  do ensino médio , d izia-se  a paixonada pelo namorado ,  c om quem já morava.  Engravidou cedo, mas,  segundo garante,  de forma  absolutamente  planejada .  Na  época   que acompanhamos seu pré-natal,  vários exames  do protocolo   estavam  indisponíveis   na rede   e , para piorar  sua si