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Mostrando postagens de novembro, 2017

DOLORES

Sua figura transmite fielmente o que deve ter significado esses 60 e poucos anos de sofrimento e solidão. Olhar rígido, pele manchada, cabelo cacheado preto lambido – endurecido pelo excesso de creme de pentear –, num rosto emoldurado por um óculos de grau de armação quadrada escura. Taciturna, com postura de ombros caídos, coroada por uma giba costal, que ilustra bem o peso do mundo que parece carregar. Ela é de todo aquele perfil típico de paciente psiquiátrico, condenado à  cronicidade, apesar das promessas da indústria farmacêutica: baixa reatividade afetiva (para não dizer nenhuma) e ausência absoluta da possibilidade de um sorriso (em 3 anos nunca esboçou qualquer expressão facial). Ideias organizadas, entretanto, sem a presença de sintomas psicóticos, o que motivou-me sempre a tratá-la de forma diferenciada. Além de diabética, em uso de insulina, obesa e hipertensa, seu caso faz-se mais complexo pelo o uso crônico de álcool, que contribui a condená-la às dependências de sua c

CRISES DA MEDICINA

Abuso de poder e insensibilidade ao sofrimento

QUAL É A DA TV?

Se a televisão usasse metade do tempo que gasta esculachando a saúde pública para ensinar a população a utilizar melhor os serviços disponíveis, transmitir informações de prevenção e promoção, explicar o manejo básico dos resfriados, gripes e diarreias, grande parte dos nossos problemas estariam resolvidos.

SERVIDOR? PÚBLICO

Ainda não entendo ao certo o que acontece na psicologia de alguns funcionários públicos, que os fazem enxergar seu trabalho como um favor e não como uma missão, uma obrigação; em que momento deslocam o beneficiário do serviço que prestam à situação de figura passiva-sem-direitos e passam a ser achar a peça mais importante da instituição. No SUS, reparo que muitas vezes queremos penalizar o usuário pelas mazelas dos governos, pela precariedade da infraestrutura e a falta de insumos. Revertemos nossa impotência no elo mais fraco. Oprimidos pela sociedade, aproveitamos nossa posição para oprimir alguém. E tudo que conseguimos é transformar os usuários, motivo fim de nossa existência, em ferrenhos inimigos...

CONSULTÓRIO OU DRIVE THRU

Tem paciente achando que consultório médico é drive thru de fast food. Chegam e vão logo pedindo, sem nem sentar direito: “Quero um exame de sangue duplo, com adicional de fezes e urina; um combo com a receita dos meus remédios controlados, um remédio pra verme e umas vitaminas; de sobremesa, um raio x da coluna e um encaminhamento para o reumatologista. Pra levar, viu doutor...!”

MINHA EXPERIÊNCIA DIETÉTICA

Alguns perguntam porquê mudei tanto e tenho comido menos carne, frango, ovo, leite de vaca, queijo, derivados e embutidos. Tenho tentado consumir esses alimentos, que a indústria à grande escala vem transformando em verdadeiras porcarias, com alto conteúdo de químicos, hormônios, antibióticos e agrotóxicos (sim, a carne tem muito mais agrotóxico que os vegetais), no máximo 1-2 vezes por semana. Não tomei essa decisão por modismo nem fanatismo de qu alquer índole. Apenas consequência de leituras e algumas modificações gradativas que foram acontecendo no meu paladar. Fui fazendo as mudanças e observando as diferenças no meu funcionamento geral. E, depois de algum tempo, fiquei tão impressionado que quis compartilhar minha experiência com vocês:  1. Maior facilidade para manter o peso corporal e diminuição da circunferência abdominal. 2. Maior disposição física. Acordo mais disposto. Não sinto preguiça depois do almoço. Melhor desempenho laboral à tarde. 3. Menor sensação de can

QUEM É O CULPADO

Apareceu num sábado, como que caído do telhado. Parecia estar de passagem. Trazia ao ombro uma bolsa de viagem preta, meio rasgada, na qual impressionava carregar o que lhe restava de vida. A UBS estava vazia, como a maioria dos sábados, o que nos permitiu conversar vagarosamente, sem interrupções. Contou-me sua história em tom agressivo, tentando depositar sobre mim as desgraças enfadonhas que arrastava. Podia sentir de longe seu alento etílico, numa boca de dentes enferruja dos, e trazia vestidas roupas que, evidentemente, há muito não trocava. Sobre a cabeça, cabelo algum restava, de um formato ovalada, comprida, brilhante. No corpo, alto e rijo, ao menos umas 6 marcas de tiro, que fez questão de sinalizar, levantando a camisa, abaixando o short, dando voltas pelo consultório. “Minha derrota aconteceu quando minha mãe faleceu. Logo depois - tinha uns 40 anos - , fui desligado da polícia. Eu era PM, no Rio de Janeiro. Um mês após minha dispensa, minha mulher me deixou. Só resto

HISTÓRIAS QUE CONFUNDEM

O cara vinha consultando há um bom tempo por emagrecimento. Tinha perdido 9 kg em dois meses, além de sentir-se apático e com “fraqueza nas pernas”. Era sua quinta consulta, apesar de ter feito os mais variados exames – solicitados por outros médicos – para descartar anemia, diabetes, tireoidopatias. Rapaz jovem, 39 anos, trabalhador manual, sem sinal algum de doença orgânica ou sistêmica.  Notei, entretanto, que, apesar de seu excelente aspecto físico , suas sobrancelhas repousavam levemente arqueadas, e seu olhar jazia um tanto sem viço. Intrometido, perguntei como andava sua vida pessoal (deveria ter um campo obrigatório no prontuário para essa pergunta).  “Há dois meses minha esposa me deixou. Uma aventura: me apaixonei por outra mulher. Sabe, essas paixonites agudas? Achei que tinha encontrado a pessoa ideal. Mas tudo durou até minha esposa descobrir e ligar pra ela esculhambando. Ela ficou indignada por saber que eu era casado e saiu fora.  “Você não disse pra ela que era

SLOW MEDICINE

Aparências nos levam a crer que o sucesso está no excesso: pratos transbordando, armários repletos, carros luxuosos, exames caros, receitas abarrotadas. A sociedade de consumo, maquinalmente, nos educa desde cedo para uma sanha hiperbólica sem fim. E esse desenfreio, na medicina, já vem cobrando seu preço alto, em termos de desperdiço de recursos, efeitos colaterais, interações medicamentosas, resistência bacteriana, aumento da morbidade, diminuição da qualidade  de vida e mortes precipitadas.  Um tênue equilíbrio deve existir entre o princípio hipocrático “primun non nocere” e o ímpeto intervencionista dos médicos, ao custo de invocarmos, se pendemos irresponsavelmente a balança para os excessos, a uma vingativa deusa da mitologia grega: Nêmesis, padroeira, segundo Ivan Illich, da iatrogenia. Contrariando essas tendências impostas pela lógica de mercado, posiciona-se, cada vez com maior eloquência, a figura do Médico de Família, cuja missão primordial é proteger-nos dos excess

CARTA AOS MÉDICOS-CHEFES DOS MANICÔMIOS

Senhores, As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredito. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para  cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos re

VERDADES NÃO DITAS SOBRE O OUTUBRO ROSA

1. Excesso de mamografias pode prejudicar.  2. Não é recomendado começar a fazer mamografias antes dos 50 anos (porque as mamas são densas, o câncer de mama muito raro nessa idade e os erros do exame muito frequentes); nem após os 65 (nessa idade é melhor fazer diagnóstico clínico). 3. Mamografia não é um exame infalível. Seu resultado depende da interpretação do radiologista, e de outros exames e/ou intervenções para confirmar suspeitas levantadas. 4. Mamografia de rastreamento pode confundir ou atrapalhar o diagnóstico do câncer em dois sentidos: por apresentar resultados falsos positivos (mamografia alterada, mas após seguimento, outros exames e intervenções ficar demonstrado que está tudo bem) e falsos negativos (mamografia com resultado normal, mas ao longo do tempo se demonstra que a mulher tinha câncer). 5. Nem todos os tumores de mama se comportam como câncer invasivo, doença. Em média 30% são tumores histológicos, localizados, que jamais causariam problemas clínicos n