Daniel Sabino

Não são as calorias dos alimentos que importam. Não é o balanço energético. Nutrição não é matemática reducionista; é biologia. São as informações que trazem os alimentos e as interações que estabelecem com a nossa micróbiota e nossa carga genética. As mesmas 250 calorias de um refrigerante e as de um prato de feijão com arroz e brócolis dialogam de formas absolutamente distintas com nosso organismo, seja pela via metabólica que ativam, seja pelos genes que expressam. Alimentação não é somente energia, é informação! Você pode até se iludir escrevendo "Tá pago" no espelho da academia, mas teu organismo sofre e adoece silenciosamente com as porcarias que você empurra pra dentro diariamente.

Século 21 fez da saúde uma quimera. É tanta indústria lucrando com nossa tragédia... alimentícia, farmacêutica, médica, química, militar, cosmética, estética, moda, medo, armas, publicitária, agro-tóxica, pecuarista-hormonal... Além da malévola indústria do aceleramento de tempo: que nos mantém afogados em projeções de futuro, e faz do presente um trânsito inconsciente, angustioso, amnésico.

Medicalização da sociedade avança de forma preocupante: crianças de 7, 8 anos são levadas ao médico ou ao dentista para extração de dentes de leite. Gente... É sério isso? Vamos continuar com a história da fada do dente... Amarrar uma linha no dente mole e puxar fazendo tração com a porta do quarto... deixar a própria criança arrancar com o dedo e se sentir corajosa... Jogar o dente caído no telhado e pedir: "Mourão, Mourão, pega esse dente podre e me dá (um emprego de assessor especial no Banco do Brasil?) outro são!!!"

Queixas no acolhimento: cefaléia, tontura e dormência nos braços. PA: 160/95 mmHg. Medicamentos em uso: atenolol e hidroclorotiazida. ...No consultório, primeira pergunta:  - Como foi o final de ano da senhora? Imediatamente. Pranto... "Só descobri quando ele já tava em Caldas Novas com a outra. Quando voltou, foi logo dizendo que queria se separar e que era pra eu passar tudo pro nome dele. E que se eu não fizesse o que ele mandava, a coisa ia feder", fazendo bico e arregalando os olhos, pondo ênfase no FEDER...  Em seu casamento anterior, havia sido deixada com quatro filhos, após 25 anos de convívio; do relacionamente atual: 13 anos jogados pro ar, com direito a descoberta de amante no brilho estrondoso dos fogos da virada. (Cada história de vida me ajuda a reclamar menos da minha) Em tempo... Viva a Família Tradicional Brasileira!

Depois descobri que tudo isso acontecia precocemente, desde cedo, antes e logo após suas primeiras regras. Nem tempo tinham elas de saber direito o que acontecia: levadas ao médico por suas mães, já saiam com prescrição de hormônios para "regular o ciclo" e evitar gravidez. Na visão higienista de alguns médicos, menina pobre tem de tomar anticonceptivo desde cedo pra não ter filho. "As pessoas são pobres porque têm essa carrada de filhos!", argumentam. Mas, não seria ao contr ário? Desse jeito, como aprenderão a reconhecer sua ovulação? Parece que mulher pobre vem até perdendo direito de escolher se pretende ou não ter filho. Com indiferença e preconceito, são colocadas no mesmo pacote de "começam tudo cedo essas meninas pobrezinhas..." Nosso reducionismo e desconhecimento da realidade é tão homérico! Como se castrar e esterilizar todas as minas fosse transformar o Brasil num país de Primeiro Mundo (só serviria para aumentar nossa solidão e decadência, pe

Tenho feito o exercício nas consultas de perguntar às meninas de 9, 10 anos, e às adolescentes de 11, 12, 13, quê visão elas têm da sua própria menstruação. De forma praticamente unânime respondem que não sabem muito bem como funciona, que não gostam, acham ruim, sujo, incômodo, e sentem vergonha, constrangimento... Em que momento essas meninas-crianças interiorizaram visões tão negativas sobre suas existências? Quê influência tem nisso as mulheres que antecederam e circundam  essas meninas? Como interfere a cultura, a sociedade e a religião na forma como essas meninas irão vivenciar seus ciclos de fertilidade, a menstruação e sua sexualidade? Precisamos quebrar essa cadeia de sofrimento condicionado imposto às mulheres na raiz: deixar de sugestionar negativamente as meninas e prepará-las sempre para o pior; impôr cargas afetivas positivas e encantadoras em torno da magia sagrada e purificadora que é tornar-se mulher fértil que menstrua, capaz de gerar outra vida humana. Aí começa o c

Em chão duro, sobre papelão, dormia a menina em seus ingratos sete anos. Um brejo, era a descida do Primavera onde jazia o barraco de madeirite. Seu pai, militar, era a encarnação do diabo na terra: rude, perverso, mulherengo, beberrão, grotesco. Por mais que de dor gritasse a menina - de dia, de noite, criada sem mãe -, o pai não atendia, a mandava calar. Passaram meses, até o cansaço de seu irmão com a ladainha dolente repetida, dia traz dia, montar-lhe na garupa de sua bic icleta e levá-la até a emergência do HRT. Rapidamente internada, com assombro da equipe de plantão. Permaneceu mais de um ano na enfermaria, tempo requerido para salvar-lhe a vida e a perna esquerda combalida por uma profunda infecção.  Aos 10 anos saiu de casa para morar com uma irmã mais velha; logo conseguiu morada como empregada doméstica em casa de família “gente boa” perto da Comercial. Apesar do acompanhamento que realiza no Sarah, de ter ficado com uma perna um pouco maior que a outra, de mancar en

APOCALIPSE 13, 2-19. Não será em nome de satanás, mas de Deus que o mundo irá acabar. O apocalipse, contrariando a descrição do derradeiro livro da bíblia, não se transfigurará em imagens assustadoras e feias, trovões, terremoto, tribulações. Chegará embebido no prazer, paulatinamente, de mãos dadas com o glamour, a luxuria e a indiferença. Nos surpreenderá na fila da farmácia ou no sofá em ​frente à TV, celular na mão, sob o ar condicionado. Ou na balada enquanto desfilamos  perfumes importados e descemos mais um combo - para que alguém finalmente nos note. Poderá ser sob efeito de álcool, netflix, lança perfume ou cocaína (seria essa a morte-perfeita-sem-sofrimento que almejamos?). Quem sabe venha em forma de nuvem e nos trague na fumaça de um narguilê ou de um hookah abarrotado. Virá sem esconder-se, no sol mais alto do dia, com sorriso de lentes de contato, terno e gravata, em corpos depilados à laser. E o terrível dragão do fim do mundo, de 10 chifres, 10 diademas, pata de urso,

Chão de pedras, aroeira, Rio e Pontes. Sorrisos crescidos ao sabor do empadão. Fogos de artifício na copa das árvores. Play back. Como se a encenação musical confessasse a existência de um lugar com auto-estima, sem complexos de inferioridade. Morro do macaco molhado, depois das quatro, dois reais para entrar. Luz verde, coração, estrela, cachaça. Carioca noutro dia para o banho vermelho: caminho real para o nascente, empresa de luz e força. Fontes e chafariz : del rey, cambaúba, de cauda e o pequeno do coreto. O coração quente multicolor da poeta acompanha e zela transeuntes, do parapeito da janela de seu quarto-sobrado. Casa antiga de desembargador e provisora do Quinto Real. Em cada desnível do empedrado ressoa sua palavra. O bar de sinuca vigia telhados de barro. Ao fundo montanhas douradas. À noite do dia 30, nos convidaram a uma casa onde fazia-se fila da vizinhança para comer. À vontade, insistiam (foliões podiam furá-la). Conta Cora que a serventia da fartura tambem serve para

Desejo um ano de mais culinária tradicional, regional, natural e menos conselhos de cientistas da nutrição; um ano de mais verduras, frutas e legumes no lugar de comprimidos. Um ano de mais orgamos e menos sermões; menos egocentrismo e mais compaixão; menos dúvida, medo e mais fé. Que sejamos capazes de abandonar, rapidamente e sem culpa, regras, condicionamentos e convenções alimentadoras de insegurança, estresse e ansiedade. Que caminhemos mais ao ar livre, respiremos e sus piremos profundamente, e revalorizemos o sabor de nosso suor. Por um ano de mais sol, água, menos hormônios sintéticos, a compensar-se com altas doses de amor próprio. Por um ano sem medicalização desnecessária do luto, da dor e do sofrimento. Que possamos nos fortalecer diante disso: com mais apoio humano, afeto, ouvidos, abraços, conselhos, paciência, alongamentos, massagem. Desejo um ano de mais especulação existencial e menos especulação laboratorial.

Ha causas e causas de sofrimento. Mas, essa, em particular, numa época como o natal, deixou meu coração do tamaninho de uma semente de mostarda. Dizia-me que sua ansiedade vinha sendo alimentada pela atividade desgastante que desempenhava: cuidadora de idosos. Que não entendia como filhos e netos preferem distância de pais e avós justo no dia da última ceia. Que lhe chegam a oferecer R$ 300,00 por noite nessa época. Que seus idosos passam o tempo inconformados e tristes pelo  abandono da família, e que ela termina por absorver parte da culpa e do remorso. Que um de seus velhinhos preferidos, com 93 anos e lúcido, foi rejeitado pela família só pelo fato de caminhar bem devagar e preferir ficar no seu canto sem pronunciar muitas palavras. Indigna pensar que esse tipo de gente de "boa família" é a mesma que logo mais vai pra internet postar frases com conselhos de auto-ajuda. A mesma que posta selfie sorrindo quando faz caridade. A mesma que abarrota as igrejas no fim de semana

Quero nada que nos tire do caminho do divino fortalecimento, da autoestima, do poder, da fé: no futuro, nos propósitos, na potência de cura, criadora e emancipadora do bem; do sentido transcendente e fantástico de existir. Que não nos confundam tecnicismos ou racionalismos estéreis. Desprezo a medicina que contribua para o pessimismo, a descrença, o catastrofismo, a insegurança, a fragilidade, o medo, a espera pelo pior. Nesse sentido, prefiro a religião, a arte e as Revoluções.

Chega final do ano, o povo vem tudo pra consulta "fazer revisão" antes de viajar. Vejo-me obrigado alertar, porém, que nem tudo é tão simples como quiséramos. Somos seres humanos, não máquinas. Médico não tem o privilégio do mecânico de trocar óleo, filtros, correias desgastadas, peças avariadas e te garantir quilometragens livres de contra-tempos. Viver é um ato heróico, único, contraditório e imprevisível; e medicina é território de incertezas imponderáveis por excelência -  que não te enganem! A única revisão real e possível é o auto-cuidado diário: de emoções e pensamentos cruéis, pseudo-alimentos, estresse, sedentarismo e drogas (farmacêuticas, enfumaçadas, inalatórias, engarrafadas, em lata, proibidas ou não). Os check-ups são as novas substâncias alucinógenas do momento, diga-se de passagem. Trazem prazer e falsa segurança. Como meu interesse não é te iludir, senão te acompanhar, como médico e amigo, nessa gigantesca aventura genuína que é a vida, só me resta te desej

Inclino-me cada vez mais contrário a cirurgias plásticas para fins eminentemente estéticos. Um dia, a medicina olhará para trás e sentirá vergonha por todos os danos e mortes causadas, em função do lucro e dos padrões de beleza que se impõem, em detrimento da saúde física e mental de muita gente, principalmente das mulheres.  Deveríamos ser incentivadores e partícipes estruturais das descobertas humanas sobre o universo, a vida, o funcionamento dos corpos; na aceitação e na a dmiração de tudo quanto nasce, existe e é sagrado, tal como veio; os primeiros em auxiliar cada individuo nessa tarefa árdua, cotidiana e por vezes difícil que é (se) amar... Como o caso de uma paciente, que veio à consulta para uma avaliação prévia à inserção do DIU um dia desses. Bonita, saudável, sem doenças. Com 35 anos, decidiu submeter-se a uma lipoescultura e cumprir com o "seu sonho" de colocar próteses mamarias.  Quarenta e cinco dias após os procedimentos, evoluiu com tromboembolismo pu

Tem clínica que a pessoa vai pra pegar um pedido com uma lista de exames, a serem realizados antes mesmo da consulta agendada com o médico. Expressão do que chamo de "medicina impessoal especulativa". Tem consultório onde determinados exames são pré-requisitos para a consulta com o médico. É simplesmente uma inversão total de valores e distorção - em função do mercado e dos excessos - da prática clínica. Desde quando papel é mais importante que gente? Infelizmente, geralmente  são esses os médicos com as agendas mais lotadas e requisitadas. Por serem agentes - inconscientes? - do shopping around da "saúde". Geralmente são os tipos de médicos que adoram prescrever suplementos vitamínicos, remédios manipulados e hormônios (que funcionam mais como placebo, a custas de efeitos colaterais e valiosos recursos financeiros). Geralmente são os que te iludem dizendo que está tudo bem com a sua vida, quando os resultados dos exames vêm normais; ou inventam doenças fictícias,

- Por que a senhora não toma os remédios da diabetes? - Essa doença é uma maldição, doutor; coisa ruim. Tem demônio envolvido. - Como assim, dona? - Tem diabo no nome, doutor. Vê só: diabo betes...

Pululam farmácias e laboratórios, na esquina de cada hospital. Com qual objetivo? Vender "saúde" e lucrar com o seu adoecimento. Não percebeu? Ou, o que é pior: lucrar com o seu medo: de ficar doente, de morrer; com sua angústia existencial e essa ansiedade insaciável que a urbanidade alimenta. Não é assistência médica que te garantizará longa vida e de qualidade - ilusão. É seu estilo de vida, seus hábitos e as condições que determinam sua existência.

A consulta com o pastor me ajudou a encontrar um exemplo ilustrativo sobre o Mais Médicos...  - O que achou da saída dos médicos cubanos, doutor? - Achei um pouco apressada. Bolsonaro podia ter respeitado mais e negociado melhor. Afinal, os médicos já estavam lá trabalhando... - Mas, cê viu que já tem mais de 17 mil médicos brasileiros inscritos no novo edital? - Uma coisa é inscrição, pastor; outra coisa é o médico se apresentar na localidade definida e permanecer nela durante um tempo. Quando o secretário de saúde informar que precisará montar num barco e descer o rio por mais 4 horas; que não haverá sinal de internet; que o shopping mais perto fica a 150 km...  - Ah, entendi. É parecido então com a minha igreja. Tem igreja em Águas Claras com 7 pastores, acredita doutor. Mas ninguém quer ir pro Recanto das Emas, Posse, as cidades do Entorno...

Fico abismado com as promessas de certa indústria. "Não doutor, esse medicamento não causa dependência. Pode prescrever com segurança". Logo, me pego pensando... Se até café, açúcar, paracetamol, bombinha pra asma viciam, imagina substâncias com efeitos psicoativos que alteram neurotransmissores e o equilíbrio de receptores cerebrais. Precisamos elevar o senso crítico de profissionais e pacientes, e trazer à tona a discussão sobre dependência a drogas farmacêuticas - cada vez crescente -, em especial ansiolíticos, antidepressivos, remédios para dormir, para controle de dor crônica e antipsicóticos.

Ando preocupado com o enfraquecimento geral da espécie. De um lado: alimentos desnaturalizados, com aditivos químicos, hormônios e agrotóxicos; crianças e adultos cada vez mais intolerantes à frustração e à dor; sedentarismo, obesidade e estresse crescentes. Do outro: aumento do pessimismo, desconfiança, desunião, opressão, preconceito e ódio; premiação do oportunismo, da traição, da mediocridade, do amiguismo, da imoralidade e da antiética; cresce o culto imbecilizante ao deus dinheiro.

Fui interno na sala "Mestre" do Hospital Calixto Garcia, no coração de Havana, e tive por maestro um galeno já de idade, negro, chamado  Ernesto Vicente Peña . Senhorzinho franzino, sarcástico, arguto e genial, a quem sempre serei grato e renderei homenagens. Foi ele quem conduziu-me pelos caminhos da paixão pela ciência e, com seu exemplo, introjetou-me um ideal de vida fundamental: a preponderância da consciência do dever a cumprir, acima de qualquer interesse monetário ou material – ainda que me reprochasse o cabelo despenteado, a barba por fazer e o aspecto amarrotado do meu jaleco. Quem não conhece a história de Cuba, não imagina em que tradição, ou em base a que valores forjou-se sua medicina e seu sistema de saúde. País que, com o triunfo da revolução, em 1959, perdeu 3000 médicos de uma só vez (metade dos que havia), que preferiram emigrar a colaborar com o novo governo que se impunha pela guerrilha, após derrotar uma sanguinária ditadura apoiada pelos Estados Unid

Muita gente não entendeu o Programa Mais Médicos até hoje, indo na onda dos memes e da perversa e desleal propaganda da direita. Os médicos cubanos que vieram para o Brasil são funcionários de carreira do ministério de saúde cubano; continuam recebendo seus salários e tem seus postos de trabalho garantidos, com todos os benefícios da carreira lá em Cuba. Vieram atuar no Brasil dando cumprimento a um convênio entre os ministérios e governos por intermédio da OPAS, mas nunca fo ram contratados diretamente pelo nosso ministério. O dinheiro que recebiam aqui tratava-se de uma ajuda de custo, por estarem cumprindo com o que em Cuba chamam de missão internacionalista; nunca foi salário. E ocuparam as vagas ociosas do programa que jamais foram preenchidas por médicos brasileiros, principalmente em distritos indígenas e regiões altamente vulneráveis. Uma das principais fontes de divisas de Cuba é a exportação de serviços de saúde, tendo mais de 60 países no mundo com os quais estabelece convê

Quando voltei para o Brasil, o clima era de tensão. 2013, Dilma. Primeiro ciclo do Programa Mais Médicos. Imaginem. Vinha de uma longa jornada, gratificante, porém difícil, atendendo populações indígenas ribeirinhas do delta do rio Orinoco, na Venezuela, num território inóspito e selvático próximo à Amazônia, Guiana Inglesa e Roraima.  O clima que encontrei no país me assustou. Cheguei no auge do ódio, da desinformação, e num momento de extrema polarização política. Graças a  isso, creio, e por posicionamentos ideológicos desencontrados, colegas médicos e outros funcionários tentaram tratar-me com indiferença e minar o chão por onde teria de transitar. Só pelo fato de haver (tido o privilégio) de cursar medicina (com uma bolsa de estudos 100% integral) em Cuba, nada menos que na Escuela Latinoamericana de Medicina (já considerada uma das melhores do mundo pela ONU - sorry). Com esforço e tranquilidade, revalidei meu diploma pelo Revalida (UnB) e pela UFMG em 2014, e apresentei-me

Era eu. Mas, em outro corpo, noutro lugar. Corpo negro, de quase dois metros de altura; os mesmos 32 anos. Era a encarnação do sofrimento, só que de um jeito distinto: dignificado, com coragem, em cada palavra, em cada gesto. Uma lucidez que impactava. Casaco de moletom, tênis esportivo, velho, jeans, sem verter uma lágrima, de fala simples, levou-nos pela espiral de sua existência com naturalidade, fazendo-nos partícipes encabulados de sua impressionante resiliência. Era atl eta; jogava basquete e praticava atletismo. Até ficar cego, aos 17 anos, idade em que desenvolvera um tipo grave de glaucoma. Preservava apenas uma porcentagem de visão tubular no olho direito. O esquerdo jazia inerte, em posição estrábica, indiferente, com a pupila embranquecida e opacada pela catarata. Contou-nos de sua solidão, tendo que se virar, e da pouca atenção que recebera da mãe quando pequeno (a quem nunca havia conseguido perdoar, de verdade). Entre consultas, postos e hospitais, relembrava sua o

Assine um acordo de paz, com você. Decrete uma trégua, hasteie a bandeira branca. Simplesmente perdoe-se. Sem remorso, culpa ou auto-punição. Entenda seus limites, e aceite-os com benevolência. Seja solidário, consigo mesmo.

"Apertem os cintos senhores passageiros" "Em caso de despressurização, máscaras irão cair..." "Em caso de pouso na água, use o assento para flutuar" "Não infle o colete salva-vidas dentro da aeronave". A gente sabe que a chance de sobrevivermos a um acidente de avião é mínima; que provavelmente não seremos capazes de seguir essas orientações na hora do desespero. Mas, essas rotinas e protocolos têm a função de criar um ambiente, uma sensação de segurança e confiança, que nos faça corajosos e indiferentes ao fato insano e sobrehumano de sobrevoarmos os céus durante horas. É a melhor analogia que encontrei para explicar o papel dos check-ups e consultas de rotina: criar uma sensação de segurança diante das angústias, incertezas e desafios da vida.

Tem nada mais chato e deprimente que repouso médico de hospital (sinal do quanto estamos cansados, adoecidos e esgotados). Você fala boooom dia, e ninguém responde. Você tenta conectar o olhar com alguém: só cabeça baixa, celular na mão, em postura evasiva. Nos tornamos máquinas? Entediado, espicho o ouvido pra escutar a conversa alheia; sempre os mesmos temas: plantão, viagens, dinheiro, dinheiro e dinheiro... Na copa, ou nos ambientes por onde circulam os outros funcionários técnicos, administrativos e de outras categorias, o clima é diferente: o pessoal se olha, se beija, troca carícias e elogios; se abraça e pergunta pela família; comenta amenidades; senta pra comer, te encara, sorrindo, e te pergunta: "ACEITA?"

1. Em relação ao câncer no geral, é preferível, por ser mais seguro, investir na linha do diagnóstico OPORTUNO, do que no de diagnóstico precoce (diminui erros e intervenções desnecessárias). 2. É importante avaliar os riscos de forma individualizada. No caso do câncer de prostasta: idade (maiores de 50 anos), antecedentes familiares (pai ou irmão com história de câncer de próstata), sintomas sugestivos (polaciuria, gotejamento pós-miccional, jato urinário enfra quecido, interrupção do jato, dificuldade em iniciar e manter o fluxo constante de urina, incontinência urinária...).  3. Homens de pela negra tem até 50% a mais de risco. 4. O rastreamento universal, não individualizado, por meio de toque retal e o exame de PSA, tem se mostrado ineficaz para reduzir mortes por câncer de próstata, ao tempo que aumentam resultados falsos positivos e intervenções desnecessárias, com suas devidas consequências psicológicas e sequelas orgânicas.  5. A sequelas mais comuns são: incontinênc

Abri a porta, e senti seu perfume. Chamei seu nome. Brecelete de prata, cabelo negro ondulado, até o ombro, brincos vistosos, decote convidativo. Olhos delineados - feito jabuticabas -, labios carnudos... Foi logo dizendo a que veio, sem nem esperar eu sentar. - Doutor, preciso que você me ajude, pelo amor de Deus; senão vou enloquecer. Meu marido está fugindo de mim.  Com uma habilidade extrema de concetar um detalhe no outro, prolixa, desatou a falar, intempestiva, fazendo o tempo da consulta literalmente voar, suspensa por um fio. Tentei direcionar a entrevista, mas, ela, desatinada, veloz, encarregou-se de simplesmente conduzir-me pelos caminhos previamente traçados por sua prodigiosa cabeça. - Tem dois meses que casamos, doutor. E o homem não funciona! NÃO FUNCIONA! Fomos de lua de mel - 10 dias na beira da praia - e não tivemos sexo, cê acredita? - Quantos anos a senhora tem?, perguntei, com a sensação de ser o mais antiquado dos médicos da terra. - 61. - E ele? -

Pretendem nos paralisar, através do medo, ameaças; criar uma atmosfera que nos imobilize, até cairmos, por cansaço, pessimismo, no derrotismo. Eles não sabem como funciona quem se move por princípios, ideias, sentido de justiça, esperança. Eles só conhecem a moeda do interesse, da conveniência, da violência, a lei do mais forte. Nossa resposta deve ser cultivar ainda mais alegrias, e arrancar sorrisos diariamente, mesmo que do fundo de um peito descrente; segurar na mão de qu em está perto, abraçar-nos, longamente, e mostrar o quanto é valioso quem divide trincheira com a gente. Violência só gera violência, não é de hoje que sabemos; o amor que lançamos ao mundo, pelo contrário, vira semente e frutifica, de formas por vezes inesperadas. Cabe nesse momento fortalecer-nos em nossos irmãos e irmãs, e fazer da solidariedade um sacerdócio sem descanso. Eles não poderão conosco. Nossa Vitória está garantida, cedo ou tarde.

Hoje, Dia do Médico/a, deixo minha singela recomendação, sobretudo aos mais novos: entregue-se à pessoa que sofre, de corpo e alma, como se fosse um familiar, bem próximo; seja contra qualquer injustiça, e preocupe-se com o que acontece ao seu redor, com seu país, como se fosse sua casa! Feliz dia para todos os que honram essa nobre profissão.

Com apenas 37 anos, gestava, para cumprimento de desapercebidos propósitos, pela 13ª vez. Era isso mesmo, apesar de meu espanto e incredulidade: tivera 11 filhos - todos de partos normais -, um aborto espontâneo, e preparava-se para receber, às vésperas das eleições, outro rebento mais.  A primeira gestação acontecera aos 13 anos da idade, ao ser "enganada" por um homem mais velho de 35, no meio do milharal. Seu pai, homem antigo, embrutecido pelo cabo da enxada, empurrara-na  desde cedo para trabalhar na roça, enquanto seus irmãos saíam ao povoado mais próximo para estudar. Era ela quem cuidava de tudo, motivo pelo qual, até hoje, permanecia analfabeta. Só sobrevive em Brasília, esclareceu - aqui no setor de chácaras da Samambaia -, graças ao auxílio de 240 reais que recebe mensalmente pelo CRAS. Passaram por sua vida três homens, com os quais casou-se e morou junto. Nenhum deles paga pensão. O último perdera-se pelo interior do Goiás, sem que a justiça pudesse jamais

- Doutor, queria muito ter um filho.  - Mas, o senhor é infértil, senhor Gomes. Diagnosticamos azoospermia, pela quarta vez consecutiva, no seu espermograma. - Mas, queria tanto ter um filho, doutor... - Já pensou em adotar? - Nem pensar, doutor. Quero ter um filho, só se for meu, fecundado por mim, sangue do meu sangue! - Mas, o senhor é estéril, senhor Gomes... (história fictícia para ilustrar discussões eleitorais estéreis)

Se pudesse pedir um favor - em forma de súplica até, de joelhos - aos progenitores e cuidadores de crianças, seria: evitem brigas, discussões acaloradas, gritos, agressões e violência, por obséquio; sobretudo na presença delas.  Vocês não imaginam a quantidade de distúrbios futuros que isso pode acarretar: baixa autoestima, ansiedade, medo, fobias, síndrome do pânico, transtornos de personalidade, histrionismo, histeria, narcisismo, egocentrismo, depressão, agressividade, introspecção, timidez excessivas. Pode ser fator decisivo na formação de indivíduos intolerantes, agressivos, inseguros e preconceituosos, seguidores em potencial de personagens pitorescos e autoritários, por sintetizarem, de forma inacabada e burlesca, o arquétipo do anti-herói.

Entrou à consulta desajeitada, com seus dois meninos. O motivo da visita do menor, com tão só 1 ano e 7 meses, era fraqueza e moleza no corpo, associado a um quadro mal definido de febre.  Reparei-lhe o rosto demacrado, e o valor de seu peso corporal registrado no prontuário atraiu minha atenção: apenas 7 kg, o peso ideal aproximado de uma criança saudável de 6 meses de vida. Perguntei a idade da mãe: 22 anos. Desempregada, há muito tempo, sobrevivendo graças ao escasso valor  que recebe do bolsa família. Confessou-me não ter nesse momento nada para comer dentro de casa, enquanto seus pequenos me observavam com cara de espanto e olhinhos arregalados. Eu que sei como o coração se me apequena sem refúgio quando ausculto em meus pacientes as injustiças desse mundo; só eu sei da avalanche que me invade. O estômago logo embrulha, e a pressa por terminar a consulta se perde, restando apenas a vontade de sair com eles por aí cobrando solução.  Diante disso, tem gente ainda que me pe

Tem gente que culpabiliza as pessoas por sua pobreza, com o argumento simplório de que são pobres porque tiveram muitos filhos.  Eu discordo diametralmente dessa visão, assim como de quem opta não ter filho porque "dá muita despesa." Eu faço uma análise inversa: o que causa pobreza é desemprego, baixos salários, inflação, violência, família disfuncional, falta de saneamento básico, analfabetismo, pouco estudo e qualificação, racismo, machismo, em um sistema que não garante op ortunidades iguais para todos, e concentra renda ao invés de distribuir. Ter muitos filhos ou não é consequência disso, ou simplesmente uma opção legítima do casal. Afinal, quem é pobre não tem direito de ter os filhos que quiser?

1. Eleição é um bom período para você sair do sedentarismo. Isso mesmo! Aproveite a panfletagem ou passeata do seu candidato/a preferido para manter uma rotina de, no mínimo, 50 minutos de caminhada ou corrida, 3 vezes por semana (se conseguir mais vezes, melhor). 2. Fuja de alimentos gordurosos, principalmente depois das 7 da noite. Lembre-se que é um período de elevado estresse, que incide em maiores níveis de cort isol circulante, favorecendo o ganho de peso e intranquilidade no sono. 3. Mantenha o celular afastado da cama ao deitar. 4. Ande com uma garrafa de água sempre com você. 5. Tome no máximo duas cervejas ou uma taça de vinho por dia. 6. Substitua o chocolate, bolos e sobremesas por rapadura. 7. Dedique 10 minutos do seu dia para exercícios de mindfulness/meditação (eu sei que é difícil), ou ciclos de respiração profunda e consciente. 8. No final do dia, faça uma postura de inversão (de cabeça para baixo, tipo plantar bananeira ou elevar bem as pernas com o

1. O diagnóstico de depressão, TAG, etc..., por um lado, favorece ao paciente melhor conhecimento sobre seu “problema”, mas, por outro, estimula o fenômeno da Personificação, contribuindo para que a pessoa incorpore o “Papel Social de Doente”, e se enxergue, não mais como qualquer ser humano que sofre, mas como um excepcional ser desajustado, estranho, gravemente enfermo, obrigado, inconscientemente, a comportar-se segundo o rótulo que lhe impuseram.​ 2. Esse tipo de diagnóstico transfere para o indivíduo toda a culpa de problemas estruturais da sociedade, da família, do ambiente, e até da época, contribuindo para o perverso caminho da autopunição. Transformar em doenças o jeito particular de cada um ser e estar nesse mundo, na minha opinião, traz mais prejuízos do que benefícios a médio e longo prazo. 3. Precisamos redefinir o padrão de “normalidade” e resignificar o papel do sofrimento. Tristeza, melancolia, dor, ansiedade, incerteza, dúvida, luto, falta de propósito de vida, ra

1. Ficarão proibidas churrascarias, rodízios de carnes e pizza.  2. Proibição rigorosa de festas open bar. 3. Proibição irrestrita da modalidade refil. 4. Fica terminantemente proibido o açúcar branco refinado em todo o território da federação. 5. Fica proibido adoçar cafés ou sucos durante sua elaboração. 6. A rapadura será reconduzida a seu sitial de Adoçante e Sobremesa Nacional. 7. Fica proibido o refinamento de farinhas, grãos ou quaisquuer cereais, assim como alterar quimicamente sua coloração natural. 8. Obrigatoriedade de assistentes nutricionais nos restaurantes self-service de grande porte, estabelecendo limites caloricos por pessoa segundo IMC e circunferência abdominal, respeitando-se o equilíbrio de micro e macronutrientes recomendados pela OMS. 9. Veiculação obrigatória de publicidade negativa para refrigerantes, bebidas doces, embutidos e gorduras trans, assim como do cigarro, no intervalo das telenovelas. 10. Obrigatoriedade de um teatro, cinema o

Extremamente ansiosa, com pitadas açucaradas de hipocondria. Algum médico sábio (ironia), ha muitos anos, havia lhe recomendado evitar exercícios físicos, devido a pequenas hérnias de disco encontradas em ressonâncias da coluna lombar (hernias inexpressivas, sem repercussão neurológica). Resultado uma década depois: 130 kilos, no caminho de uma cirurgia bariátrica. Perguntei-lhe o que a deixava tão ansiosa, ao que me respondeu, apressada e sem pesar: "Ah, doutor, nasci assim!" Obs: O que dizemos ou recomendamos durante uma consulta pode determinar a vida inteira de uma pessoa...

Homem senta na consulta, como um animalzinho de estimação indefeso, distante da dona; tira o celular do bolso, abre a conversa de whatsapp e começa a falar: "Doutor, peraí. Não lembro direito... Deixa ver as recomendações da mulher." Cabeça baixa, olhos no visor, prossegue: "Sinto uma dor no joelho de vez em quando, precisava de um encaminhamento pro ortopedista; minha pressão sobe às vezes, queria marcar com o cardiologista; ela falou também que eu pedisse um encaminhamento  pro urologista, pra ver essas questões da prostata, e outro pro proctologista, pra fazer uma colonoscopia". Obs1: Homem não consegue nem consultar direito sozinho, imagina com porte de armas... Obs2: evitem ir ao médico de família para solicitar encaminhamento a outros especialistas. Obs3: queremos te conhecer e ouvir seus problemas. Pode falar! O resto deixa com a gente.

40 anos, mãe de 9 filhos (9 filhos, na capital do país!). Pouco letramento, e precárias condições sócio-econômicas. Seu único desejo era pôr um DIU (dispositivo intrauterino), pra ver se conseguia dar um tempo de gestação, e trabalhar.  (Não trazia nenhum exame em mãos, alertaram-me). Sempre que tentava o procedimento, esbarrava na mesma burocracia dos postos de saúde. "Tem que ter aquilo, aquilo e aquilo antes; tem que fazer uma palestra; pegar um ofício com a enfermeira... Fazer um ultrassom; esperar o resultado da prevenção...". Dessa vez, percorremos um caminho diferente. A dentista (quem brilhantemente identificou sua demanda durante o atendimento) veio conversar comigo sobre sua situação; discuti o caso com a enfermeira, e entramos rapidamente num consenso: era necessário fazer algo por aquela mulher, sem muito rodeio ou protocolo. Verificamos se havia bandejas de DIU. Tinha. Fizemos uma avaliação minuciosa do aparelho ginecológico: estava tudo certo; colhemos

Às vezes, me abordam com a seguinte pergunta tendenciosa: "A medicina cubana é mais preventiva, né?" Ao que respondo, para assombro do interlocutor: NÃO, a saúde em Cuba não é boa porque investiram em PREVENÇÃO. Essa noção transmite a falsa ideia de que a saúde cubana não conta com a tecnologia e o avance de excelência em todos os níveis do sistema. A saúde em Cuba é boa porque investiram em atenção primária, secundária, terciária e quartenária. Investiram em cobertura univer sal de saúde da família. Investiram em prevenção, mas também na parte curativa, paliativa e de reabilitação, com as melhores técnicas existentes no mundo e medicamentos de ponta. Investiram na rede completa, com policlínicas de referência para cada unidade básica de saúde, assim como em hospitais de nível secundário e terciário. Cuba investiu pesado no setor de biotecnologia, e hoje produz 80% dos fármacos que utiliza. Em Cuba, todo mundo pode ser médico, inclusive os filhos das famílias mais humildes

Gari. Salário: 1200 + 700 em cesta-ticket. Sustenta marido, genro, filha - todos desempregados -, mais 3 netas, e ainda ajuda seus outros dois filhos, sempre que consegue. Há quem pretenda culpabilizá-la por suas doenças...