CONFLITO DE LINGUAGEM

Consultas da atualidade mais parecem encontros diplomáticos entre povos longínquos, sem anuência de tradutor. Já perceberam? O paciente vai embora com a impressão de não haver dito o que realmente queria, e o médico fica com a estranha sensação de haver sido integralmente incompreendido.
O que estará acontecendo? Por que essa estranha sensação de mútua incompreensão? E se os médicos estiverem suprindo deficiências na compreensão de seus pacientes com o aumento na solicitação de exames e prescrição de remédios? Será realmente isso que as pessoas esperam de uma consulta médica? 
Grande parte das consultas ambulatoriais de adultos, sobretudo na atenção primária, acontecem pelos seguintes motivos: dor de cabeça, subida de pressão, palpitações, zumbido no ouvido, dor de estômago, enjoo, tontura, sensação de quentura, fraqueza, dormências, dor no pé da barriga, dor em tudo-quanto-é-lugar, aperto no peito, nó na garganta, sensação de falta de ar...
Numa consulta apressada, como de costume, o médico faz algumas perguntas, na tentativa de explorar a queixa inicial, e vai logo solicitando exames para descartar possíveis causas orgânicas. Porém, esse tipo de consulta redunda frequentemente em desperdício de tempo, recursos e em aumento da ansiedade hipocondríaca do paciente, já que na maioria das vezes os exames vêm com resultados normais, ou com alterações insignificantes, sem relação alguma com o sintoma inicial em questão. 
Mas, quê aconteceria se parássemos para refletir um pouco mais antes de definir nossas condutas? E se refinássemos melhor nossa curiosa intuição médica na tentativa de compreender o SENTIDO desses sintomas? São essas queixas realmente sintomas orgânicos (tem ritmo, frequência, intensidade, fator de melhora, piora) ou são espécies de códigos utilizados pelo “doente” na tentativa de expressar o que verdadeiramente sente?
A dificuldade é que nós, médicos, fomos treinados para explorar queixas, sintomas, no sentido apenas propedêutico da coisa. Nossa formação, infelizmente, não coloca ênfase na relevância de conhecer o paciente para tentar compreender melhor o significado que podem ter seus sintomas. 
Somos tributários, ademais, principalmente no ocidente, de um modelo de medicina que despreza a afetividade, ao ponto de considerar Problemas de Saúde Reais apenas alterações físico-químicas-anatômicas quantificáveis da arquitetura corporal e cerebral, que, ao meu ver, limita muito a compreensão de nossa efêmera existência. 
É bem frequente que as pessoas nos tragam esses “sintomas” como dicas de seus verdadeiros e mais cruentos problemas existenciais. Queixas indiferenciadas funcionam muito mais como LINGUAGEM do que como sintoma real, e têm por objetivo explicitar o sofrimento da pessoa, que urge em estabelecer contato humano com alguém que finalmente a escute, com o interesse que merece. 
Esse fenômeno é estimulado porque no imaginário coletivo é considerado pouco razoável que alguém procure um médico apenas para contar que brigou com sua esposa ou namorado; que está insatisfeito do ponto de vista sexual ou profissional; que não passou em uma prova importante, que um familiar ou vizinho adoeceu; que o filho está preso ou o genro metido com o tráfico de drogas. É plausível socialmente receber atenção e cuidados, seja de médicos ou de pessoas queridas, se nos colocamos no papel de “doentes” e manifestamos qualquer sintoma concreto. 
Esses “sintomas” corpóreos – muito mais linguagem do que sintomas estritamente – buscam insinuar às pessoas mais próximas e aos médicos, inconformidades do ponto de vista emocional, afetivo e pessoal. Esse é o ponto.
Sintomas histéricos, neuróticos e funcionais, sem explicação do ponto de vista orgânico, anatômico e físico-químico, são quase sempre autobiográficos. Trata-se de comunicação indireta, não discursiva, simbólica, até mesmo icônica, que o médico e outros profissionais têm o desafio de decifrar e traduzir, qual fosse um dialeto. 
Por isso, se queremos realmente ajudar nossos pacientes, não hesitemos em estabelecer conexão real, humana, afetiva, com as pessoas que procuram por nossos cuidados. Sobretudo se praticamos medicina em cenários ambulatoriais: ambientes (que deveriam servir) para escutar, dedicar tempo, conhecer o doente, sentir compaixão e ter empatia. 
Não percamos esse espaço reservado pela história da humanidade ao médico, consagrado na arte de ouvir e aconselhar. Muitas vezes as pessoas nos trazem sintomas e o que desejam, no fim da consulta, são bons e valiosos conselhos.
Proponham um formato de consulta diferente. Estimulem que seus pacientes verbalizem suas trajetórias; que falem sobre seus medos, frustrações e preocupações. Só então “sintomas” indiferenciados começarão a fazer sentido. 
Peçam que desabafem com maior frequência e criem o hábito de expressar verbalmente o que sentem e o que desejam; que evitem guardar e ruminar pensamentos e emoções. Em muitos casos, essa será sua melhor prescrição.

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