ACAMPAMENTO TERRA LIVRE
Trabalhei três anos no delta do rio Orinoco, como médico em comunidades indígenas da etnia warao. Tenho para mim como uma das experiências mais incríveis da vida. Foi onde fiz-me gente, costumo dizer; onde, por vez primeira, conduzi partos sozinho, para tempos depois ser orgulhosamente escolhido como padrinho da criança (Dioscar, ainda lembro seu nome).
Todos os dias fazia um esforço colossal na tentativa de comprender a concepção de mundo daquela gente: idioma, hábitos, referências geográficas, noção de família, formas de adoecimento e sua misteriosa relação com a cura. De certa forma, produzia-me grata frustração a certeza de nunca conseguir aproximar-me nem um pouco desse objetivo.
Uma palavra do seu idioma nativo provocava-me simpatia: maraisa, tradução de amigo, que em sentido literal quer dizer coração do outro; e o fato de preferirem, antes de trazerem seus doentes até mim, consultar com o wisidato - o xamã curandeiro da comunidade, que os envolvia em densas cortinas de fumaça de tabaco, cultivado nas escassas terras que não permaneciam alagadas pelo rio, em determinadas épocas do ano.
Sempre admirei, no fundo, esse desdém, a determinação e a autoestima dos povos originários. A forma como nos olham: com pena, com lástima, uma mezcla de ternura e um pedido de ajuda. Mesma impressão tive em meu passo pelo Peru, Bolívia e Guatemala: miradas desconfiadas, desafiadoras, melancólicas; e a sensação de ser um intruso mais, um curioso invasor.
Ontem, caminhando pelas dependências do Acampamento Terra Livre - um encontro anual de povos originários de diversos cantos do Brasil -, instalado afrontosamente no eixo monumental de Brasília, não consegui deixar de sentir-me de forma semelhante: grupos dançando toré, pisando forte, em fila, ao som de chocalhos que abafavam o ruído de carros e coletivos; corpos pintados semi-nus com adereços apropriados a seus costumes; rodas e rodas de pessoas sentadas conversando, contando histórias, em família, entre amigos; fogueiras, e panelas de comida no chão, sobre o gramado que um dia erroneamente pensamos ser nosso.
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