UM OLHO VALE MAIS QUE MIL VIDRAÇAS
Só quem trabalha na saúde talvez entenda o que irei escrever. Ontem me senti em um imenso pronto-socorro a céu aberto: gases tóxicos enevoando o ambiente, sensação de queimação intensa nos olhos, garganta e traqueia; pessoas caídas, gritos de desespero e socorro, mulheres e homens ensanguentados, gente ajoelhada tentando encontrar oxigênio com suas cabeças próximas ao chão.
Quando observei que dois helicópteros sobrevoavam nossas cabeças, lançando indiscriminadamente bombas lá de cima, e policiais armados atiravam na nossa direção — posicionados nos flancos e na frente do protesto — , pensei: isso aqui vai ser um desastre. O resultado não podia ser diferente.
Na altura do setor hoteleiro norte, identifiquei um senhor com o rosto cheio de sangue e um tampão mal colocado no seu olho esquerdo (aproximadamente às 17hs). Preocupado, imediatamente me aproximei, me identifiquei e ofereci assistência. O rapaz de 35 anos não era de Brasília, e estava completamente desorientado. Avaliei rapidamente a situação e sugeri acompanhá-lo até o hospital mais próximo.
(Para quem assiste tudo de casa, um ferido é apenas um ferido. Para quem está naquela situação, atordoado ainda com o barulho das bombas e helicópteros, com dor de cabeça pela quantidade de gás inalado, esgotado, e tem de ir a pé, caminhando entre carros e semáforos, carregando uma pessoa ferida que se queixava de tontura e muita dor, não é nada fácil; faz a gente odiar a repressão!)
Chegando ao HRAN, identifiquei-me como médico e nos indicaram prontamente o local da triagem. A gente chega numa situação dessas e espera que alguém solicitamente nos acolha e nos ofereça ao menos um copo d’água. Mas não. A enfermeira de plantão demorou ainda uns 20 minutos para nos atender (éramos os primeiros da fila); com aquela cara de má vontade (que muitos conhecemos)… fez pouquíssimas perguntas, nem verificou sinais vitais, classificou nosso caso como amarelo e pediu aguardássemos em frente ao consultório 5 (mas, taxativa, alertou que só era permitido permanecer um acompanhante).
Me retirei e, para minha surpresa, exatamente 5 minutos depois, meu paciente saia pela porta da emergência com um papel na mão que dizia: “À oftalmologia do HBDF. Paciente com trauma no OE com risco de perfuração”. Como assim? Foi avaliado por uma enfermeira e pelo médico oftalmologista de plantão e nada foi feito? Imediatamente fui até o consultório do médico que o atendeu e perguntei se não havia uma ambulância para remover meu paciente. Laconicamente, respondeu-me que não e me sugeriu falasse com o chefe do plantão (bati na porta inúmeras vezes, mas ninguém respondeu).
Saí do hospital indignado pensando: como pode um médico oftalmologista, de plantão, colega de profissão (sem pacientes na fila), nem sequer tirar o tampão do olho atingido para avaliar a situação? Nem sequer se dispor em limpar um pouco o ferimento, colocar algum colírio, fazer um novo curativo? Simplesmente contentou-se em despejar seu olhar preconceituoso sob meu paciente e sua acompanhante, com cara de nojo, e despachá-los (esse tipo de gente se diz cristã, mas sempre lava as mãos como Pilatos. E se fosse um familiar dele precisando de ajuda?).
Esperamos em frente à emergencia do HRAN mais uns 30 minutos (o trânsito de Brasília ontem simplesmente colapsou), até aparecer um carro que nos levou até o Hospital de Base. Tentativa frustrada pelo intenso engarrafamento, estacionamos na altura do setor hoteleiro sul e seguimos a pé. Caminhava aflito porque meu paciente notava-se já um tanto debilitado, sangrava ativamente pelo olho e queixava-se ainda de tontura.
No HBDF fomos recebidos por uma equipe de triagem logo na entrada, cuja enfermeira simpática nos acompanhou velozmente até o consultório do oftalmologista de plantão. Nos deixou sentados em frente a uma porta e desapareceu. Esperamos outros 40 minutos, sem mais informações. Entrei a um consultório vizinho até sair do outro lado e constatei que o do oftalmologista estava vazio. Devia ser quase umas 8hs da noite e havia, ao parecer, troca de escala do plantão.
Quando, por fim atendidos, depois de alguns: “procura aquela pessoa pra incluir no sistema”, “volta lá e faz tal coisa”; eu rodando com meu paciente ensanguentado pra cima e pra baixo (e quê paciente! Terminei admirando sua coragem e fortaleza), veio gelado o prognóstico, sem preâmbulos, como um balde de água fria (a mesma sensação de quando soube que o exército sitiava as ruas de Brasília): “Ele vai ficar internado. Provavelmente perca a visão desse olho”.
29/11/2016
Indizível!
ResponderExcluirEsperançosa com a tua humanidade e chorando copiosamente!
Só nos resta lutar até o final, sem descanso, por que prevaleça a humanidade!
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