ERA EU

Era eu. Mas, em outro corpo, noutro lugar. Corpo negro, de quase dois metros de altura; os mesmos 32 anos. Era a encarnação do sofrimento, só que de um jeito distinto: dignificado, com coragem, em cada palavra, em cada gesto. Uma lucidez que impactava. Casaco de moletom, tênis esportivo, velho, jeans, sem verter uma lágrima, de fala simples, levou-nos pela espiral de sua existência com naturalidade, fazendo-nos partícipes encabulados de sua impressionante resiliência.
Era atleta; jogava basquete e praticava atletismo. Até ficar cego, aos 17 anos, idade em que desenvolvera um tipo grave de glaucoma. Preservava apenas uma porcentagem de visão tubular no olho direito. O esquerdo jazia inerte, em posição estrábica, indiferente, com a pupila embranquecida e opacada pela catarata.
Contou-nos de sua solidão, tendo que se virar, e da pouca atenção que recebera da mãe quando pequeno (a quem nunca havia conseguido perdoar, de verdade). Entre consultas, postos e hospitais, relembrava sua odisseia, e o amargo sabor dos maus-tratos que repetidamente recebia. 
"Médico quer nem saber o que a gente sente, se temos ou não dinheiro para comprar os remédios caros que passam." 
Quando recebeu a notícia de que perderia a visão de vez, de forma irreversível, perguntaram se ele era "sujeito largado no mundo" - por andar sempre só -, palavras com que foi, infelizmente, obrigado a concordar. 
Anos depois, casou, teve um filho, mas insistia na importância de não ter outros para não repetir o grave "erro" de sua mãe: ter tido vários e não conseguir dar amor e atenção por igual a todos. O pai não conhecera. 
Uma vez - para piorar sua delicada situação -, um colega de trabalho, incrédulo de sua condição e do aspecto vítreo de seu globo ocular, por pura "brincadeira", pôs o dedo no seu olho estrábico só para testar. O resultado da piada foi uma úlcera na córnea que precisou de vários meses de tratamento para melhorar.
Parecia que tudo coincidia da pior forma possível em sua vida, no intuito de gerar revolta, indignação e desviá-lo do Caminho. Entretanto, sua postura decepcionava as expectativas mais deterministas: mantinha-se resignado, acreditando nos propósitos, com a fé de ser o único entre os vivos capaz de suportar tamanha provação.
Despediu-se com um pedido de perdão - por sua atitude impaciente enquanto aguardava ser chamado -, agradecendo, encarecidamente, o simples feito de ter sido escutado atentamente por mim e minha residente; não sem antes lançar o dardo que abalou e estremeceu nossa existência, de forma definitiva: 
"Quando minha mãe morreu, eu vi tudo. O médico disse que precisaria fazer uma reanimação. Na hora, percebeu que o desfibrilador estava quebrado. Até me ofereci para consertá-lo, porque sou técnico, e entendo um pouco dessas coisas... O tempo corria. Pressenti, no desespero. Minha velha. Cheia de tubos. Aproximei-me da cama, sem fôlego, e, antes do último suspiro, alcancei dizer. Eu
Te
Amo

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