OSTEOMIELITE

Em chão duro, sobre papelão, dormia a menina em seus ingratos sete anos. Um brejo, era a descida do Primavera onde jazia o barraco de madeirite. Seu pai, militar, era a encarnação do diabo na terra: rude, perverso, mulherengo, beberrão, grotesco. Por mais que de dor gritasse a menina - de dia, de noite, criada sem mãe -, o pai não atendia, a mandava calar.
Passaram meses, até o cansaço de seu irmão com a ladainha dolente repetida, dia traz dia, montar-lhe na garupa de sua bicicleta e levá-la até a emergência do HRT. Rapidamente internada, com assombro da equipe de plantão. Permaneceu mais de um ano na enfermaria, tempo requerido para salvar-lhe a vida e a perna esquerda combalida por uma profunda infecção. 
Aos 10 anos saiu de casa para morar com uma irmã mais velha; logo conseguiu morada como empregada doméstica em casa de família “gente boa” perto da Comercial.
Apesar do acompanhamento que realiza no Sarah, de ter ficado com uma perna um pouco maior que a outra, de mancar enquanto caminha, da enorme cicatriz que lhe atravessa a tibia, não compreende ao todo o porquê de ainda sentir tanta dor. 
Até hoje, 50 anos depois, sente como se sua perna estivesse tomada por feridas internas, intratáveis, que nunca fecharam. 
Perguntada, no fim da consulta, sobre o paradeiro de seu pai, respondeu sem alarde, com um tanto de furor no olhar:
- Morreu aos 64 anos num azilo, triste, solitário e só, abandonado pelos próprios filhos do seu outro casamento.

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